A interpretação dos "1290
dias" e dos "1335 dias" de Daniel 12:11 e 12 respectivamente
como 1290 anos e 1335 anos é antiga, podendo ser encontrada já entre os
expositores judeus do século 8 d.C. Essa interpretação, baseada no princípio
dia-ano (Núm. 14:34; Ezeq. 4:6 e 7), continuou sendo advogada pelos seguidores
de Joaquim de Fiore (1130-1202), bem como por vários outros expositores,
durante a pré-Reforma, a Reforma e a tradição protestante subseqüente.(1)
Guilherme Miller (1782-1849), por sua vez, acreditava, em primeiro lugar, que
tanto os 1290 anos como os 1335 anos haviam iniciado em 508, quando Clóvis
obteve a vitória sobre os visigodos arianos, passo esse decisivo na união dos
poderes político e eclesiástico para a punição dos considerados hereges pelo
catolicismo medieval. Em segundo lugar, Miller cria que os 1290 anos haviam se
cumprido em 1798, com o aprisionamento do Papa Pio VI pelos exércitos
franceses; e, finalmente, que os 1335 anos se estenderiam por mais 45 anos até
o término dos 2300 anos de Daniel 8:14, entre 1843 e 1844.(2)
Essa interpretação foi mantida pelos primeiros adventistas observadores do
sábado,(3) transformando-se na posição histórica da Igreja Adventista do Sétimo
Dia até hoje.(4) Porém, em anos recentes, alguns pregadores independentes
começaram a propagar o que consideram nova luz sobre os 1290 e 1335 dias de
Daniel 12. Rompendo com a tradicional compreensão adventista, tais indivíduos
alegam que ambos os períodos são compostos por dias literais, e não dias que
representam anos, a se cumprirem ainda no futuro.
Alguns deles sugerem que ambos os períodos iniciarão com o futuro decreto
dominical; que os 1290 dias literais são o período reservado para o povo de
Deus sair das cidades; e que ao término dos 1335 dias literais a voz de Deus
será ouvida anunciando "o dia e a hora" da volta de Cristo.(5) Por
mais interessante que essa teoria possa parecer, existem pelo menos cinco
razões básicas que nos impedem de aceitá-la.
1. A teoria se baseia numa leitura parcial e tendenciosa dos escritos de
Ellen White.
Um dos argumentos para justificar o cumprimento futuro dos 1290 e 1335 dias é a
falsa alegação de que Ellen White considerava como errônea a noção de que os
1335 dias já haviam se cumprido no passado. Alusões são feitas à carta que ela
enviou "à igreja na casa do irmão Hestings", datada de 7 de novembro
de 1850, na qual são mencionados alguns problemas relacionados com o irmão O.
Hewit, de Dead River.
No texto original em inglês dessa carta aparece a seguinte declaração: "We
told him of some of this erros in the past, that the 1335 days were ended and
numerous errors of his."(6) Essa declaração deveria ser traduzida
simplesmente como: "Nós lhe mencionamos alguns dos seus erros do passado,
que os 1335 dias haviam se cumprido e muitos dos seus erros." No entanto,
alguns defensores da nova teoria profética preferem substituir a conjunção
"que" (inglês that) pela expressão "tais como" (inglês such
as), alterando dessa forma o sentido do texto. Assim, eles conseguem fazer com
que a sentença diga que entre os erros advogados por Hewit estava também a
idéia de "que os 1335 dias haviam se cumprido".
Se a intenção de Ellen White era realmente corrigir o irmão Hewit por crer que
os 1335 dias já haviam se cumprido, permaneceriam as indagações? Por que Ellen
White se limitou a corrigir, em 1850, de forma parcial e tendenciosa, apenas a
posição desse irmão, sem qualquer repreensão aos demais líderes do movimento
adventista que também criam que esse período profético já havia se cumprido em
1844? Por que ela não reprovou o seu próprio esposo, Tiago White, por afirmar
na Review and Herald, ainda em 1857, que "os 1335 dias terminaram com os
2300, com o Clamor da Meia-Noite em 1844"?(7)
Por que ela não o repreendeu por continuar publicando na mesma Review vários
artigos de outros autores, advogando a mesma idéia?(8)
E mais, como poderia Ellen White haver declarado, em 1891, que "nunca mais
haverá para o povo de Deus uma mensagem baseada em tempo. Não devemos saber o
tempo definido nem para o derramamento do Espírito Santo nem para a vinda de
Cristo"?(9)
Evidências de que Ellen White cria que esses períodos já haviam se cumprido em
seus dias podem ser encontradas também em suas declarações segundo as quais
Daniel já estava sendo vindicado em sua sorte (ver Dan. 12:13) desde o início
do tempo do fim.(10) Cremos, portanto, que o Dr. Gerard. P. Damsteegt,
professor do Seminário Teológico da Universidade Andrews, estava correto ao
declarar que "já em 1850 E. G. White havia escrito que 'os 1335 dias
haviam se cumprido', sem especificar o tempo do seu término".(11)
2. A teoria quebra o paralelismo profético-literário do livro de Daniel.
Para justificar o suposto cumprimento futuro dos 1290 e 1335 dias, os advogados
da "nova luz" profética alegam, sem qualquer constrangimento, que o conteúdo
da Daniel 12:5-13, onde são mencionados esses períodos, não é parte da cadeia
profética do livro de Daniel. Porém, uma análise mais detida da estrutura
literária do livro não confirma essa teoria. O Dr. William H. Shea esclarece
que, no livro de Daniel, cada período profético (1260, 1290, 1335 e 2300 dias)
aparece como um apêndice calibrador ao corpo básico da respectiva profecia que
lhe corresponde.
Por exemplo, a visão do capítulo sete é descrita nos versos 1-14, mas o tempo a
ela relacionado só aparece no verso 25. No capítulo 8, o corpo da visão é
relatado nos versos 1-12, mas o tempo só ocorre no verso 14. De modo
semelhante, os tempos proféticos relacionados com a visão do capítulo 11 só são
mencionados no capítulo 12.12 Esse paralelismo comprova que os 1290 dias e os
1335 dias de Daniel 12:11 e 12 compartilham da mesma natureza
profético-apocalíptica dos termos "tempo, tempos e metade de um
tempo", de Daniel 7:25, e as 2300 tardes e manhãs de Daniel 8:14.
Assim, se aplicarmos o princípio dia-ano aos períodos proféticos de Daniel 7 e
8, também devemos aplicá-lo aos períodos de Daniel 12, pois todos esses
períodos estão interligados, de alguma forma, e a descrição de cada visão
indica apenas um único cumprimento para o período profético que lhe
corresponde.
Além disso, a alusão em Daniel 12:11 ao "sacrifício diário" e à
"abominação desoladora" conecta os 1290 e os 1335 dias não apenas com
o conteúdo da visão de Daniel 11 (Dan. 11:31), mas também com as 2300 tardes e
manhãs de Daniel 8:14 (ver Dan. 8:13; 9:27). O mesmo poder apóstata que haveria
de estabelecer a "abominação desoladora" em lugar do "sacrifício
diário" é descrito em Daniel 7 e 8 como o "chifre pequeno", e em
Daniel '' como o "rei do Norte." Portanto, a tentativa de interpretar
alguns períodos proféticos de Daniel (70 semanas, 2300 tardes e manhãs) como
dias que simbolizam anos, e outros (1290 dias, 1335 dias) como meros dias
literais, é totalmente incoerente com o paralelismo profético-literário do
livro de Daniel.
3. A teoria apóia-se em uma interpretação não bíblica do termo hebraico tamid.
A teoria de que tanto os 1290 dias quanto os 1335 dias iniciam com o futuro
decreto dominical é baseada na suposição de que, em Daniel 12:11, as expressões
"sacrifício diário" e "abominação desoladora" significam
respectivamente o sábado e o domingo. Mas também essa suposição carece de
fundamento escriturístico.
A expressão "sacrifício diário" é a tradução do termo hebraico tamid,
que significa "diário" ou "contínuo", ao qual foi
acrescentada a palavra "sacrifício", não encontrada no texto original
de Daniel 8:13 e 12:11. A palavra tamid é usada nas Escrituras em relação não
apenas com o sacrifício diário do santuário terrestre (ver Êxo. 29:38 e 42),
mas também com vários outros aspectos da ministração contínua daquele santuário
(Êx. 25:30; 27:20; 28:29 e 38: 30:8; I Crôn. 16:6). No livro de Daniel, o termo
se refere, obviamente, ao contínuo ministério sacerdotal de Cristo no santuário
celestial (Dan. 8:9-14). Já a expressão "transgressão assoladora" ou
"abominação desoladora" subentende o amplo sistema de contrafação a
esse ministério, construído sobre as teorias antibíblicas da imortalidade
natural da alma, da mediação dos santos, do confessionário, do sacrifício da
missa, etc.
Não podemos concordar com a teoria de que em Daniel 12 o "diário"
representa simplesmente o sábado, e a "abominação desoladora", o
domingo. Para crermos dessa maneira, teríamos que esvaziar essas expressões do
amplo significado que lhes é atribuído tanto pelo próprio contexto bíblico no
qual aparecem, como também pelo consenso geral das Escrituras.
4. A teoria reflete a interpretação jesuíta futurista da Contra-Reforma
católica.
Os defensores da interpretação literal-futurista dos 1290 e 1335 dias alegam
que sua posição é genuínamente adventista e plenamente sancionada pelos
escritos de Ellen G. White. No entanto, se analisarmos mais detidamente o
assunto à luz da História, perceberemos que essa teoria rejeita o historicismo
e o princípio dia-ano da tradição protestante, para se alinhar abertamente com
o futurismo literalista da Contra-Reforma católica.
Os reformadores protestantes do século 16 identificavam o "chifre
pequeno" com o papado, do qual se originaria a "abominação
desoladora" de que fala Daniel.(13)
Foi para inocentar o papado dessas acusações que o cardeal italiano Roberto
Bellarmino (1542-1621), o mais capaz e renomado de todos os polemistas
jesuítas, sugeriu que o "chifre pequeno" era um mero rei e que os
1260, 1290 e 1335 dias eram apenas dias literais a se cumprirem somente no
período que antecederia o fim do mundo.(14) Dessa forma, o papado contemporâneo
não poderia mais ser identificado como o "chifre pequeno" ou
"rei do Norte" e, conseqüentemente, não mais poderia ser responsabilizado
pela "transgressão assoladora" ou "abominação desoladora".
Muitos dos defensores contemporâneos da interpretação futurista dos 1290 e 1335
dias desconhecem o comprometimento dessa teoria com o futurismo da
Contra-Reforma católica. Mas, mesmo assim, tais indivíduos deveriam pelo menos
reconhecer que "essas propostas futuristas repousam, essencialmente, sobre
uma compreensão errônea dos padrões de pensamento da poesia hebraica", e
que "elas representam uma leitura do idioma hebraico através de óculos
ocidentais".(15)
5. A teoria menospreza as advertências de Ellen G. White contra a tentativa
de se estender o cumprimento de qualquer profecia de tempo para além de 1844.
Se essa teoria fosse correta, bastaria ser promulgado o decreto dominical, e já
saberíamos por antecipação quando a porta da graça se fecharia e quando
ocorreria a segunda vinda de Cristo. Essa é, por conseguinte, mais uma forma
sutil e capciosa de se estabelecer datas para os eventos finais. Por mais
originais e criativas que possam parecer, essas tentativas não passam de
propostas especulativas, que desconhecem ou menosprezam, em nome de Ellen
White, as suas próprias advertências sobre o assunto.
Já em 1850, ela escreveu: "O Senhor me mostrou que o tempo não tem sido um
teste desde 1844, e que o tempo nunca mais será um teste."(16)
Posteriormente, acrescentou que "nunca mais haverá para o povo de Deus uma
mensagem baseada em tempo". "O Senhor mostrou-me que a mensagem deve
ir, e que não deve depender de tempo; pois tempo não será nunca mais uma prova.
Deus não nos revelou o tempo em que esta mensagem será concluída, ou quando
terá fim o tempo de graça."(17)
Somente depois do fechamento da porta da graça, e pouco antes da segunda vinda,
é que Deus há de declarar aos salvos "o dia e a hora da vinda de
Jesus".(18)
Comentando a expressão "que não haveria mais tempo" (Apoc. 10:6 KJV),
em 1900, a sra. White declarou: "Esse tempo, que o anjo declara com um
solene juramento, não é o fim da história deste mundo, nem o tempo de graça,
mas o tempo profético, que precederia o advento de nosso Senhor. Ou seja, o
povo não terá outra mensagem a respeito de um tempo definido. Após este período
de tempo, que se estende de 1842 a 1844, não pode haver qualquer cálculo
definido de tempo profético."(19)
Sendo esse o caso, por que então continuar insistindo em reaplicar os 1290 dias
e os 1335 dias de Daniel 12 para o futuro? Cabe somente a Deus julgar o grau de
sinceridade daqueles que assim o fazem, mas uma coisa é certa: A"fé em uma
mentira não terá influência santificadora sobre a vida ou o caráter. Nenhum
erro é verdade, nem pode tornar-se verdade pela repetição, ou por fé nele. ...
Posso ser perfeitamente sincera em seguir um caminho errado, mas isso não torna
o caminho certo, nem me levará ao lugar que eu desejava chegar."(20)
PROTEGIDOS DO ENGANO
É evidente, portanto, que a teoria de um cumprimento futuro dos 1290 e 1335
dias baseia-se numa leitura parcial e tendenciosa dos escritos de Ellen White,
quebra o paralelismo profético-literário do livro de Daniel, apóia-se em uma
interpretação não bíblica do termo hebraico tamid, reflete a interpretação
jesuíta futurista da Contra-Reforma católica, e menospreza as inspiradas
advertências contra a tentativa de se estender o cumprimento de qualquer
profecia de tempo para além de 1844.
Numa época em que os vendavais de falsas doutrinas estarão soprando com forte
intensidade (Efés. 4:14), "para enganar, se possível, os próprios
eleitos" (Mat. 24:24), só estaremos seguros se alicerçados sobre a clara e
inamovível Palavra de Deus. Toda "nova luz", para ser verdadeira,
deve estar em perfeita harmonia com o consenso geral das Escrituras e dos
escritos inspirados de Ellen White.(21) Os atalaias do povo de Deus jamais
deveriam permitir que as conjecturas e as especulações humanas os impeçam de
dar à trombeta o sonido certo (Eze. 33:1-9; I Cor. 14:8).
Referências:
1 LeRoy Froom, The Prophetic Faith of Our Fathers,Washington, D.C.: Review
and Herald, 1954, vol. 4, págs. 205 e 206.
2 William Miller, Evidences from Scripture and History of the Second Coming of
Christ about the Year a.D. 1843, and of His Personal Reign of 1000 Years,
Brandon, Vermont: Telegraph Office, 1833, pág. 31; Idem, Evidence from
Scripture and History of the Second Coming of Christ, about the Year 1843,
Exhibited in a Course of Lectures, Boston, Joshua V. Himes, 1842, págs. 95-104,
296 e 297; Idem, Synopsis of Miller's Views, Signs of the Times, 25/01/1843,
págs. 148 e 149.
3 P. Gerard Damsteegt, Foundations of the Seventh-day Adventist message and
Mission, Grand Rapids, MI; Eerdmans, 1977, págs. 168-170.
4 ver Uriah Smith, Synopsis of the Present Truth, nº 12, Review and Herald,
28/01/1858; Stephen N. Haskell, The Story of Daniel the Prophet, Berrien
Springs, MI, 1903; págs. 263-265; J. N. Loughborough, The Thirteen Hundred and
Thirty-Five Days, Review and herald, 04/04/1907, págs. 9 e 10; Uriah Smith, The
Prophecies of Daniel and the Revelation,Washington, D.c., Review and
Herald, 1944, págs. 330 e 331; George Price, The Greatest of the Prophets: A
New Commentary on the Book of Daniel, (Mountain View, CA, 1955, págs. 337-342;
Araceli S. Melo, Testemunhos Históricos das profecias de Daniel, Rio de
Janeiro, RJ, Laemmert, 1968, págs.727-729. Francis D. Nichol (editor), The
Seventh-day Adventist Bible Commentary, Washington, D.C., Review and Herald, 1977,
vol. 4, págs. 880 e 881; Vilmar e. Gonzalez, "Os 1290 e 1335 dias em
Daniel 12", Revista Adventista, 09/82, págs. 43 e 45; Hacques B.
Doukhan, Daniel: The Vision of the End, Berrien springs, MI, 1989, pág. 135;
William H. Shea, "Time Prophecies of Daniel 12 and Revelation 12 e 13, in
Frank Holbrook (editor), Symposium on Revelation - Book 1, Daniel and
Revelation Commitee Séries, vol. 6, Silver Spring, MD, 1992, págs. 327-360.
5 Victor Michaelson, Delayed Time-setting Heresies Exposed,Payson, AZ; Leaves-Of-Autumn,
1989.
6 E. G. White, Carta H-28, 07/11/1850.
7 James White, "The Judgment", Review and Herald, 29/01/1857, pág.
100.
8 J. N. Loughborough, "The Hour of His Judgement Come", Review and
Herald, 14/02/1854, pág. 30; Uriah Smith, "Short Interviews with
Correspondents", Idem, 24/02/1863, pág. 100, e 08/09/1863, pág. 116.
9 Ellen G. White, Mensagens Escolhidas, vol. 1, pág. 188.
10 Idem, Manuscrito 50, 1893; Carta K-59, 22/11/1896; Manuscrito 176,
04/11/1899; Manuscrito 10, 1900; Carta B-6, 17/01/1907.
11 P. Gerard Damsteegt, Op. Cit., pág. 169.
12 William H. Shea, The Abundant Life Bible Amplifier, BoiseID, Pacific
Press Association, 1996, págs. 217-223.
13 LeRoy Froom, Op. Cit., vol. 2, págs. 241-463.
14 Ibidem, págs. 495-502.
15 Frank Holbook, Symposium on Revelation - Book 1, pág. 327.
16 Elen G. White, Primeiros Escritos, pág. 75
17 Idem, Op. Cit., vol 1, págs. 188 e 191.
18 Idem, O Grande Conflito, pág. 640.
19 Comentários de Ellen White em The Seventh-day Adventist Bible Commentary,
vol. 7, pág. 971.
20 Ellen G. White, Mensagens Escolhidas, vol. 1, pág. 56.
21 Idem, Counsels to Writers and Editors, págs. 33-51.
POR ALBERTO R. TIMM